Folclore e Cultura Popular
Eu aumento mais não invento.
Em 2010 eu estava em Recife fotografando a Noite dos Tambores Silenciosos. É um momento especial da segunda-feira de Carnaval, em que a alegria da festa é interrompida pela homenagem silenciosa dos maracatus de baque virado aos ancestrais. Num palco, uma ambientadora simpática anunciava no microfone que aquilo era cultura e não folclore. Um ano depois, a mesma moça estava em São Paulo, num encontro de congadas na praça da Sé, dizendo exatamente a mesma coisa.
Mas que diacho é isso ?
Folclore é uma adaptação da palavra inglesa Folklore que significa sabedoria do povo ( Folk = povo; Lore = sabedoria ). Consta que ela foi usada pela primeira vez em 1846 por um arqueólogo inglês numa carta publicada numa revista. Sua abrangência foi crescendo e incluiu tudo que tem a ver com o que o povo cria e elabora para transmitir conhecimento e celebrar seus momentos importantes. As lendas fazem parte do folclore de um povo. Boitatá, Saci, Curupira, tudo é folclore brasileiro. Por conta disso muita gente por aqui associa o nome “folclore” a coisa que não existe de fato. Coisa inventada, falsa, até mentirosa. Curioso que isso aconteceu também com outra palavra inglesa: marketing, que também é às vezes usada como sinônimo de falsidade.
Afinal…
Mas estamos falando mesmo é de cultura popular. Dessas coisas que o povo faz sozinho, sem ler nos livros, sem a ajuda de um professor e que, ao contrário da cultura erudita, não é feita para ser mostrada. É feita para ser cantada e contada, para ser dançada, para ser vivida. Mesmo quando olhamos para o artesanato como manifestação da cultura popular, ele raramente começa na vida do artesão como algo para ser exposto, vendido, consumido e dar lucro. Em geral ele surge primeiro como uma necessidade utilitária ou como uma forma de retratar no barro e na madeira aspectos de devoção e do cotidiano. A cultura popular não precisa de palco, de apresentador, de cronograma. Precisa de respeito.
O folclore espetacular
Muita coisa prejudica a cultura popular e ameaça sua existência. A oralidade de sua transmissão precisa do interesse de gerações mais novas para garantir a manutenção do saber e do conhecimento. Por outro lado a espetacularização dessas manifestações, muitas vezes disfarçadas como tentativas de preservação mal intencionadas, tem transformado a cultura popular em apresentações com data e hora marcadas, palcos e cenários montados, que esquecem e fazem esquecer que o folclore não existe para ser visto. Quem fotografa ou filma, também pode cair na tentação de acreditar que está contribuindo para a preservação da cultura, o que acaba se tornando argumento para supervalorizar o próprio trabalho e fazer com que a foto do fato seja mais importante que o fato.
Essa transformação da cultura popular em erudita, em espetáculo para ser apreciado, filmado e fotografado está acontecendo no Bumba meu boi, nas Congadas, na Capoeira, em quase tudo que começou nos campos, nos terreiros, nas vilas e comunidades, e com frequência é incentivada e patrocinada pelo poder público, que distorce as intenções e devoções e as apresenta como atração turística.
Quem vê, pensa que viu
Para o turista, ou para o expectador passageiro e descompromissado, a espetacularização do folclore parece natural. O colorido das roupas a organização da apresentação, a qualidade do som e, quem sabe, até o camarote podem fazer com que ele se sinta como se estivesse em contato com o mais puro das nossa tradições. Todavia, dançar numa apresentação é diferente de brincar espontaneamente numa praça. Para o brincante que se torna ator, o desafio de não esquecer sua origem e a origem da sua dança pode ser muito maior do que todo o trabalho para se deslocar ao local da apresentação.
O espetáculo ilude a todos e sua divulgação nem sempre colabora com a preservação. É preciso atrair quem queira conhecer e não apenas ver.
A cultura popular precisa de respeito
O respeito de que o folclore precisa só vai ser obtido pelo conhecimento. Educar, informar, explicar é o que vai fazer com que comunidades, e não governos, se interessem pela origem das crenças e pela manutenção das tradições. Mostrar apenas, é muito pouco.
As escolas de todos os níveis tem um papel importante na formação de observadores interessados e interlocutores. É preciso formar pessoas que se interessem e sejam capazes de contar essas histórias, especialmente a quem delas nunca fez parte. Pessoas que sejam capazes de resgatar nas comunidades o respeito e o orgulho pelo que é antigo e que, muitas vezes, é a base da sua identidade.
Completando
Existem mudanças que se tornam necessárias com o passar do tempo. O material de fabricação dos instrumentos e das roupas, a organização social dos grupos como forma de preservarem direitos e estabelecerem as responsabilidades de seus integrantes, são parte de um processo de modernização pelo qual, mesmo o que é tradicional tem que passar.
Os limites dessas mudanças são sutis. Ultrapassá-los implica em eliminar preceitos, excluir conceitos, abandonar o conhecimento e, finalmente, esquecer o que é a cultura popular.
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